Ficção XXVII – Nós percebemos?

Enquanto observava atentamente a colocação da pedra de fecho na entrada do túmulo,
sentiu um carinhoso aperto no braço. Olhou para o lado e reconheceu o perfil curvado de
Nicodemos, que segurava nas enrugadas mãos o pote contendo a mistura de mirra e aloés que
trouxera para a preparação do corpo.
— Sacerdotes e chefes do povo – disse Nicodemos, – membros do Sinédrio, guardas do
templo, autoridades romanas, soldados, discípulos e inimigos, povo de Israel… quantos terão
percebido o que aconteceu aqui hoje, meu bom José? A quantos será permitido desvendar o
significado da vida e da morte deste homem?
— Tê-lo-emos nós percebido, Nicodemos? – retorquiu José de Arimateia. – Ser-nos-á
permitido a nós desvendar esse significado? E, em caso afirmativo, como viveremos depois
disso?
— Somos homens letrados, conhecemos a inquietação do espírito que é própria da
sabedoria – disse Nicodemos. – Sabemos que a ignorância fortalece as convicções do dia e
favorece o sono pesado durante a noite. Conhecer é duvidar.
— Procuramos com a mente, Nicodemos. Procuramos demasiado com a mente.
Queremos fixar as certezas na inteligência, mas arrancamo-las do coração. Usamos filactérias
para prender a Lei ao pensamento que nos define, mas deixamo-la fugir das emoções que nos
movem.
Nicodemos apontou para o túmulo já completamente cerrado, enquanto os criados se
afastavam, fatigados da missão cumprida.
— É verdade – baixou o tom de voz, como se receasse o efeito do que ia dizer. – E ali
jaz quem nos pregou o contrário. Perversa é a surdez de quem não quer ouvir.
— E incauta é a voz de quem sabe que não será ouvido – acrescentou José. – Nós
sabíamos que isto aconteceria, Nicodemos. Percebemo-lo desde a primeira vez que escutámos
as suas palavras, porque conhecemos o modo de pensar daqueles que se sentam connosco no
Sinédrio.
— Ele também sabia – afirmou Nicodemos. – Falei com ele vezes suficientes para
perceber que ele sabia. Não era ingénuo nem louco. Sabia o que iria acontecer e preparou-se
para isso.
José acenou com a cabeça lentamente, num assentimento preenchido de admiração.
— Cumpriu o seu desígnio. Não se desviou, não fugiu, não torceu o destino que lhe
cabia. De quantos de nós se poderá dizer o mesmo?
— Como vês, José, nós percebemos – observou Nicodemos.
— Talvez. Mas como viveremos depois disso?